segunda-feira, abril 30, 2007

O talho



Às vezes é preciso talhar...

Deixar sangrar até quase morrer.

É preciso escoar a alma, porque ela cresce a cada centésimo de segundo.

Pode-se implodir!

A dor do talho faz transcender a matéria, ver as entranhas, respirar o cheiro da própria carne.

Ver a cor do próprio sangue faz lembrar que se está vivo, mergulhando no vermelho da carne, mórbido e sereno ao mesmo tempo, corrente...

A dor traz o suplício do perdão de qualquer erro, por através dela se fazer entender que ninguém passa de um ser vivo, complexo, porém humano.

E ainda se ver assim, é algo esplêndido, régio diria.

É melhor escoar, quente, depois frio, depois coagulado...

É preciso ver a cicatriz para entender o que a dor fez mudar: uma cicatriz, uma história.

E a consciência de saber que o talho foi provocado, pode ser o preço para se subir um degrau, ou, dependendo da profundidade do corte, vários!

Mas é a prática do "talhar" que contempla a magnitude deste ato tão sublime e nobre.

Um talho, só se faz pela segunda vez no mesmo local, se não foi bem feito da primeira vez, e isso é um desperdício de tempo, sacrifício, prazer e, sobretudo, espaço.

O talho que se vale deixa cicatriz, não marca.

Deixa beleza, não amargura. Deixa experiência, não nostalgia.

O talho que se preza revela, sobretudo a dor do sofrimento íntimo no escôo, na hora necessária, exata e crucial para uma renovação do fluxo vital a reabilitação carnal depois de um aviltamento espiritual.

O talho não tem que ser grande, nem largo, nem profundo... Apenas intenso.

O talho não tem que ser no corpo, mas na alma. Pois só ela transcende a matéria para que se possa apreciar tal ato.

Talhar não é tolher, é libertar.

É preciso silêncio e solidão.É preciso ritual, concentração.

Para o talho é preciso antes de tudo consciência para que não haja arrependimento, uma alma escoada, não poderá ser recuperada, nem deve ser essa a intenção.


(Mirrofer)

Talvez...


Apetece-me subir ao cimo dum monte, abrir um buraco fundo e deitar todos os medos, dragões, pesadelos, dores...

Talvez não conseguissem fugir depois de enterrados e sepultados...

Talvez o vento forte os dissipasse para longe...

Talvez o frio gélido os congelasse para sempre...

Talvez não me perseguissem mais...

Talvez...

CASTELÃ DA TRISTEZA


Altiva e couraçada de desdém,

Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!

Passa por ele a luz de todo o amor...

E nunca em meu castelo entrou alguém!


Castelã da Tristeza, vês?... A quem? ...


- E o meu olhar é interrogador --

Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr...

Chora o silêncio... nada...ninguém vem...


Castelã da Tristeza, porque choras

Lendo, toda de branco, um livro de horas,

À sombra rendilhada dos vitrais?...


À noite, debruçada, plas ameias,

Porque rezas baixinho? ... Porque anseias?...

Que sonho afagam tuas mãos reais?


Florbela Espanca