Às vezes é preciso talhar...
Deixar sangrar até quase morrer.
É preciso escoar a alma, porque ela cresce a cada centésimo de segundo.
Pode-se implodir!
A dor do talho faz transcender a matéria, ver as entranhas, respirar o cheiro da própria carne.
Ver a cor do próprio sangue faz lembrar que se está vivo, mergulhando no vermelho da carne, mórbido e sereno ao mesmo tempo, corrente...
A dor traz o suplício do perdão de qualquer erro, por através dela se fazer entender que ninguém passa de um ser vivo, complexo, porém humano.
E ainda se ver assim, é algo esplêndido, régio diria.
É melhor escoar, quente, depois frio, depois coagulado...
É preciso ver a cicatriz para entender o que a dor fez mudar: uma cicatriz, uma história.
E a consciência de saber que o talho foi provocado, pode ser o preço para se subir um degrau, ou, dependendo da profundidade do corte, vários!
Mas é a prática do "talhar" que contempla a magnitude deste ato tão sublime e nobre.
Um talho, só se faz pela segunda vez no mesmo local, se não foi bem feito da primeira vez, e isso é um desperdício de tempo, sacrifício, prazer e, sobretudo, espaço.
O talho que se vale deixa cicatriz, não marca.
Deixa beleza, não amargura. Deixa experiência, não nostalgia.
O talho que se preza revela, sobretudo a dor do sofrimento íntimo no escôo, na hora necessária, exata e crucial para uma renovação do fluxo vital a reabilitação carnal depois de um aviltamento espiritual.
O talho não tem que ser grande, nem largo, nem profundo... Apenas intenso.
O talho não tem que ser no corpo, mas na alma. Pois só ela transcende a matéria para que se possa apreciar tal ato.
Talhar não é tolher, é libertar.
É preciso silêncio e solidão.É preciso ritual, concentração.
Para o talho é preciso antes de tudo consciência para que não haja arrependimento, uma alma escoada, não poderá ser recuperada, nem deve ser essa a intenção.
(Mirrofer)